Desconsideração da personalidade jurídica Requisitos novo CPC
Neste artigo, evidenciamos alguns comentários acerca os requisitos para desconsideração da personalidade jurídica, sobremodo à luz do art. 133 e segs. do novo CPC, art. 50 do Código Civil e art. 28 do CDC.
Também revelamos considerações ao incidente processual, criado no NCPC, além de farta jurisprudência sobre o tema.
Ademais, colacionamos várias ilustrações com imagens, as quais, seguramente, darão maior segurança a uma melhor compreensão do tema.
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( 1 ) Surgimento da personalidade jurídica: efeitos patrimoniais
Antes de cuidarmos do significado da teoria da desconsideração da personalidade jurídica – para alguns doutrinadores é o mesmo que “teoria da superação”, “teoria da penetração” ou ainda “Disregard Doctrine” -- tema de fundo destas breves linhas, faremos considerações prévias do surgimento da personalidade jurídica; mais propriamente acerca dos efeitos jurídicos do aparecimento da personalidade jurídica.
Respeitante à personalidade jurídica da pessoa natural, a doutrina civilista majoritária inclina-se que o seu surgimento se dá com o nascimento com vida. Apoiam-se, sobretudo, na redação que repousa no Código Civil:
Art. 2° - A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.
É dizer, o então nascituro, do nascimento com vida – v.g., com a primeira troca de oxigênio no mundo exterior --, tem reconhecida sua personalidade jurídica. Com isso, a partir de então tem para si, dentre outros atributos inerentes à personalidade, o direito à moral, à imagem, a um nome, à liberdade etc.
De outro ângulo, agora com respeito à pessoa jurídica de direito privado, essa passa a existir a contar do registro de seu ato constitutivo no registro próprio.
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Confira-se:
CÓDIGO CIVIL
Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.
Art. 985. A sociedade adquire personalidade jurídica com a inscrição, no registro próprio e na forma da lei, dos seus atos constitutivos (arts. 45 e 1.150).
Dessa forma, formando-se a personalidade jurídica da sociedade empresária, têm-se alguns efeitos daí decorrentes, como, v.g., nome empresarial próprio, nacionalidade e domicílio. Acima de tudo, inclusive esse aspecto reflete nosso propósito de fundo destas considerações, a titularidade de um patrimônio próprio; distinto do patrimônio dos sócios, portanto.
Com esse enfoque, convém ressaltar as lições de Sérgio Campinho:
“Detentora de personalidade jurídica, a sociedade é capaz de direitos e obrigações, passando a ter existência distinta de seus membros. “ (CAMPINHO, Sérgio. O direito de empresa à luz do novo Código Civil. 5 Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 63)
Com a mesma sorte de entendimento professam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:
“O consectário natural da personalização das pessoas jurídicas é o reconhecimento de sua autonomia patrimonial em relação aos seus instituidores, como sustentado alhures.
O ordenamento jurídico confere personalidade jurídica às empresas, permitindo que formem uma esfera jurídica e patrimonial autônoma e independente, apartada do patrimônio individual de cada um de seus sócios.”(FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. 10ª ed. Salvador: Juspodivm, vol. 1, 2012, p. 447)
Contudo, lamentavelmente, surge dessa autonomia patrimonial da sociedade empresária um problema muito comum: a ocultação do patrimônio da sociedade com o propósito de fraudar os credores.
Tal postura funciona como uma espécie de blindagem patrimonial. O patrimônio social não se confunde com o dos sócios, como acima salientado. Quando a sociedade empresária se encontra insolvente, não é raro encontrarmos sócios agindo de má-fé procurando encobrirem os bens da sociedade de eventual constrição judicial.
Trava-se, com isso, uma batalha judicial acirrada entre devedor e credor. Esse procurará “quebrar” essa blindagem patrimonial, também expressada por Nelson Rosenvald e Cristiano Farias como sendo o “véu societário”.( ob. cit., p. 452)
Ampliando tais argumentos, também sustenta Paulo Nader que esse princípio (da desconsideração) identicamente é conhecido como liftin or piercing the veil, que revela ser levantando ou perfurando o véu. (Curso de direito civil, 7 Ed., Rio de Janeiro: Forense, vol. 1, 2010, p. 215) (cf. também Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito civil, 23 Ed., Rio de Janeiro: Forense, vol 1, 2010, p. 286)
Nesse contexto, surge a possibilidade do credor formular em juízo – mais a frente irei destacar que essa conduta processual necessita de requerimento expresso do credor (novo CPC, art. 135 e segs.) --, com o fito de “superar” essa blindagem patrimonial; um pedido de desconsideração da personalidade jurídica.
Ademais, se aceita (a desconsideração), tal situação processual ocorrerá episodicamente. É dizer, é um acontecimento transitório que não importa na “despersonificação” da pessoa jurídica. Portanto, ao invés disso, a sociedade empresária é preservada.
Todavia, oportuno destacar que, acertadamente, alguns Tribunais têm entendido que, tratando-se de “firma individual” – pois se trata de uma ficção jurídica --, não se faz necessário o pedido de desconsideração da personalidade jurídica.
Com efeito, vejamos o seguinte julgado que bem explana esse entendimento:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO DE EXECUÇÃO POR QUANTIA CERTA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. DESNECESSIDADE. MICROEMPRESA. AUSÊNCIA DE DISTINÇÃO ENTRE O PATRIMÔNIO DA PESSOA FÍSICA E JURÍDICA.
Em que pese a parte agravada, seja microempresa e firma individual, o pedido de desconsideração da personalidade jurídica é diverso das razões apresentadas em recurso para que a responsabilidade por obrigações assumidas pela recorrida recaiam sobre o patrimônio particular de seu titular. - É vedada a apreciação em sede de agravo de questão não submetida ao juízo e primeiro grau, sob pena de supressão de instância e ofensa ao princípio constitucional do duplo grau de jurisdição. Agravo de instrumento desprovido. (TJRS; AI 0030179-48.2016.8.21.7000; Novo Hamburgo; Décima Sétima Câmara Cível; Rel. Des. Gelson Rolim Stocker; Julg. 14/04/2016; DJERS 22/04/2016)
Interessante evidenciar o ponto de vista salientado pelo professor Rubens Requião, quando, comentando julgado originário do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, assim ressalvou:
“O Tribunal de Justiça de Santa Catarina explicou muito bem que o comerciante singular, vale dizer, o empresário individual, é a própria pessoa física natural, respondendo os seus bens pelas obrigações que assumiu, quer sejam civis, quer comerciais. A transformação de firma individual em pessoa jurídica é uma ficção do direito tributário, somente para o efeito de imposto de renda (Ap. Cív. nr. 8.447 – Lajes, in Bol. Jur. ADCOAS, nr. 18.878/73).”(REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 25 ed. São Paulo: Saraiva, vol. 1, 2005)
( 2 ) Desconsideração da personalidade jurídica: objetivo
Tendo-se em conta a situação acima descrita, percebeu o legislador pátrio que seria de toda conveniência fosse provido o credor de mecanismos para inviabilizar a fraude na recepção do crédito inadimplido. Surge, então, aprumado na legislação alienígena, a figura jurídica da desconsideração da personalidade jurídica.
A primeira norma nacional que agregou tal hipótese foi o Código de Defesa do Consumidor, datado dos idos de 1990.
A esse propósito, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho assim aduzem:
“O Código Civil de 1916, todavia, por haver sido elaborado no final do século XIX, época em que os tribunais da Europa se deparavam com os primeiros casos de aplicação da teoria, não dispensou tratamento legal à teoria da desconsideração.
Coube à jurisprudência, acompanhada eventualmente por leis setoriais, o desenvolvimento da teoria no Direito Civil brasileiro.
Nesse contexto, deve ser lembrada a importante contribuição dada pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), que incorporou em seu sistema normativo norma expressa a respeito da teoria da desconsideração: “(GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. 14 ed. São Paulo: Saraiva, vol. 1, 2012, p. 279)
Citando antes um exemplo bastante esclarecedor, Fábio Ulhoa Coelho discorre acerca da situação em que o devedor almeja favorecer uma blindagem patrimonial e, com esse enfoque, sustenta a separação da autonomia dos bens dos sócios:
“Como se vê destes exemplos, por vezes a autonomia patrimonial da sociedade empresaria dá margem à realização de fraudes. Para coibi-las, a doutrina criou, a partir de decisões jurisprudenciais, nos EUA, Inglaterra e Alemanha, principalmente, a ‘teoria da desconsideração da personalidade jurídica’, pela qual autoriza o Poder Judiciário a ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, sempre que ela tiver sido utilizada como expediente para realização de fraude.”(COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. 14 Ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 126)
Nesse compasso, a desconsideração da personalidade jurídica é um instrumento que serve de anteparo para, eficientemente, permitir que o credor possa, por intermédio do Poder Judiciário, coibir os abusos ou fraudes de devedores inescrupulosos.
( 3 ) Desconsideração da personalidade jurídica: requisitos
De outra banda, mister acentuar que a separação de bens da sociedade e de seus componentes societários é a regra. É dizer, afastar-se a personalidade jurídica da sociedade para atingir o patrimônio dos sócios não é o ordinário. A exceção, portanto.
Bem a propósito são as colocações evidenciadas por Sílvio de Salvo Venosa, quando o mesmo chama atenção que não só o patrimônio dos sócios pode ser atingido. Para além disso, outras pessoas jurídicas ou naturais, alheias ao quadro social, as quais, de forma direta ou indireta, igualmente tenham participado da fraude. (VENOSA, Sílvio de Salvo, cf. Direito Civil. 12 ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 290)
Comumente nos deparamos com casos onde, na praxe jurídica, o credor, por meio de seu advogado, pelo simples fato isolado (por si só) da inadimplência da sociedade empresária, requerer a superação da personalidade jurídica dessa. Não é o caso, por certo.
É altamente ilustrativo trazer à colação os seguintes arestos:
O PEDIDO DA EXEQUENTE PARA BUSCA DE ATIVOS EM NOME DO EXECUTADO ROBSON SE BASEOU NO FATO DE QUE, EM ALTERAÇÃO CONTRATUAL DA EMPRESA EXECUTADA, HOUVE A RETIRADA DO SÓCIO JOÃO ANTONIO E, DESDE ENTÃO (2011), A PESSOA JURÍDICA PERMANECE COM UM ÚNICO SÓCIO.
2. Segundo a exequente, não foi observado o prazo de 180 dias do artigo 1.033, inciso IV do Código Civil, o que acarreta a transformação da sociedade em unipessoal ou individual. 3. No entanto, a recorrente aduz não ser necessária a instauração da desconsideração da personalidade jurídica da executada, sob o pretexto de não existir mais personalidade jurídica a ser desconsiderada, o que não pode prosperar. 4. É importante mencionar que com a entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil, a desconsideração passou a ser consagrada como uma das modalidades de intervenção de terceiros, a ser processada através de incidente, conforme artigos 133 e seguintes deste diploma legal. 5. Segundo o artigo 1033, inciso IV, do CC, a falta de observância do prazo de 180 dias para a constituição de pluralidade de sócios acarreta a dissolução da sociedade, e não sua transformação em unipessoal. 6. Tal dissolução, ainda que irregular, não é capaz de caracterizar o abuso da personalidade jurídica, o desvio de finalidade ou, ainda, a confusão patrimonial, requisitos exigidos pelo art. 50 do Código Civil para se adotar a medida extrema da desconsideração. 7. Destarte, é preciso que fique evidente o dolo dos gestores da sociedade para que se possa redirecionar a dívida para o sócio restante, o que só poderá ser averiguado com a instauração do incidente determinado. 8. O escopo do legislador foi o de permitir a ampla defesa e o contraditório, com a manifestação do sócio ou da pessoa jurídica para, querendo, se defender do pedido. 9. Nada impedirá, assim, que, no prosseguimento da execução, a credora demonstre adequadamente os pressupostos do artigo 50 do NCC, assim como o devedor tenha a oportunidade de produzir alegações defensivas e responder ao pedido. DESPROVIMENTO DO RECURSO. (TJRJ; AI 0062504-08.2021.8.19.0000; Rio de Janeiro; Vigésima Sexta Câmara Cível; Rel. Des. Wilson do Nascimento Reis; DORJ 11/02/2022; Pág. 915)
APELAÇÃO CÍVEL Nº. 0001205-59.2016.8.08.0049 APELANTES. JACIARA CALIMAN DA SILVA E XERXES JOSÉ CALIMAN APELADO. AUTO POSTO PEDREIRAS LTDA. RELATOR. DES. CONVOCADO RAIMUNDO SIQUEIRA RIBEIRO ACÓRDÃO APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS DE TERCEIROS. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. MEDIDA EXCEPCIONAL. NÃO COMPROVAÇÃO DOS REQUISITOS CONSTANTES NO ART. 50 DO CCB. INEXISTÊNCIA DE BENS PENHORÁVEIS NÃO ENSEJA O DEFERIMENTO DO PLEITO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
1. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) prevê o afastamento momentâneo da personalidade da pessoa jurídica de modo que os efeitosde certas e determinadas obrigações possam recair sobre o patrimônio pessoal dos sócios e administradores da referida pessoa. Para tanto, o Código Civil, em seu Art. 50, com a redação existente à época da instauração do incidente, exige que esteja demonstrado o abuso da personalidade jurídica, que se caracteriza pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial. 2. O Juízo de Origem, apesar de apontar com acerto que os recorrentes ocuparam, pelo menos até 2004, posição de destaque dentro da empresa Golden Fruit S. A., não demonstra de maneira satisfatória o preenchimento dos requisitos ensejadores da desconsideração da personalidade jurídica. 3. O fato de não ter sido localizado patrimônio em nome da pessoa jurídica, não autoriza, por si só, sua desconsideração, objetivando redirecionar a execução/cumprimento de sentença para seus sócios. 4. Na r. Decisão proferida pelo Juízo de Origem no bojo da Ação Monitória, que acolheu o pedido de desconsideração da personalidade jurídica (fls. 137/139), este ainda destaca que dois outros sócios da empresa foram condenados por crime de apropriação indevida de contribuição previdenciária, por deixarem de repassar ao INSS as contribuições sociais descontadas de seus empregados nos períodos de 07/2004 a 10/2004, entendendo que tal fato confirma os indícios da prática de atos de desvio patrimonial da empresa ré. Não obstante tal afirmação, não é possível considerar que apenas tal conduta reprovável de dois sócios da empresa demonstre a prática de atos de desvio patrimonial desta, por ser imprescindível outros elementos probatórios para configurar tal requisito, na forma do Art. 50, § 2º do CCB. 4. Recurso CONHECIDO e PROVIDO. (TJES; AC 0001205-59.2016.8.08.0049; Segunda Câmara Cível; Rel. Des. Conv. Raimundo Siqueira Ribeiro; Julg. 14/09/2021; DJES 10/02/2022)
AGRAVO DE INSTRUMENTO. INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA.
Execução de Título Extrajudicial embasada em Cédula de Crédito Bancário Empréstimo-Capital de Giro. Decisão que, diante do encerramento irregular das atividades da empresa, sem o cumprimento das obrigações pendentes admitido pelo sócio da devedora e à vista dos requisitos autorizadores, ACOLHEU a desconsideração da personalidade jurídica da devedora, para inclusão dos sócios no polo passivo da execução. INSURGÊNCIA do coexecutado. DESCABIMENTO. Sócio e avalista que admitiu e comprovou nos autos, ter providenciado a baixa voluntária da empresa sem o cumprimento das obrigações pendentes. Esvaziamento patrimonial da devedora principal. Caracterizado o abuso e o desvio da finalidade da personalidade jurídica. Requisitos autorizadores da incidência da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Inteligência do artigo 50 do Código Civil. Inclusão dos sócios no polo passivo da execução que é de rigor. Precedentes do C. STJ e deste Eg. Tribunal de Justiça. DECISÃO MANTIDA. RECURSO NÃO PROVIDO. (TJSP; AI 2187066-60.2021.8.26.0000; Ac. 15363101; Bauru; Décima Quarta Câmara de Direito Privado; Rel. Des. Lavínio Donizetti Paschoalão; Julg. 01/02/2022; DJESP 09/02/2022; Pág. 1817)
Ora, fosse assim poucos agregariam esforços para constituir uma sociedade empresária. Afinal, por qualquer imperfeição na administração da empresa, a qual trouxesse inadimplência, seria o suficiente para os sócios sofrerem a dura penalidade da constrição de seus patrimônios pessoais. Felizmente não é assim, em regra.
Por padrão o direito pátrio adota os ditames do quanto contido no art. 50 do Código Civil, quando tratamos de desconsiderar a personalidade jurídica, que assim reza:
“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.” (sublinhamos)
Por esse norte, ou seja, quanto aos requisitos para ensejar a desconsideração da personalidade jurídica, são estas linhas professadas por Paulo Lôbo:
“Nas demais hipóteses regidas pelo CC, não basta, por exemplo, a insolvência, pois há de se provar o desvio de finalidade ou a demonstração da confusão patrimonial.”( LÔBO, Paulo. Direito civil. 3 Ed. São Paulo: Saraiva, vol. 1, 2012, p. 175)
Ratificando as linhas doutrinarias supramencionadas, outrossim manifestando-se acerca dos requisitos à desconsideração da personalidade, novamente colacionamos as palavras de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:
“14.5. Requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica
De acordo com o art. 50 do Código Civil, é possível desconsiderar a personalidade jurídica, por ato judicial, em caso de abuso de direito caracterizado por i) desvio de finalidade ou ii) confusão patrimonial, deixando antever uma opção explícita pela teoria maior objetiva da desconsideração da personalidade jurídica, não perquirindo de elementos de natureza subjetiva (não se discute o grau de intenção fraudulenta dos sócios)” (ob cit., p. 456)
Com esse enfoque:
Execução de título extrajudicial. Decisão que indeferiu a desconsideração da personalidade jurídica. Pleito para o seu deferimento. Possibilidade. Configuração dos elementos previstos no art. 50 do Código Civil. Dissolução irregular cumulada com a insolvência patrimonial. Frustação de todas as tentativas para obter se o crédito. Reforma da decisão exarada pelo juízo a quo para autorizar a desconsideração. 1. A aplicação do art. 50 não pode ser indiscriminada, sob pena de corromper o sistema e a própria função de tipificação de modelos societários. Os pressupostos para a sua aplicação são: a) existência da pessoa jurídica distinta de seus sócios. Logo deverá ter situação de registro e existência, pois quando for uma sociedade de fato, a responsabilidade será voltada diretamente aos seus membros; b) a sociedade limitada, pois se fosse ilimitada, a desconsideração seria desnecessária; c) verificação dos pressupostos objetivos de abuso da personalidade, fraude pautada pelo desvio de personalidade ou confusão patrimonial (medina, José miguel Garcia; Araújo, fábio caldas de. Código Civil comentado. São Paulo: editora revista dos tribunais. 2014).2. Recurso conhecido e provido. (TJPR; Ag Instr 1450726-3; Curitiba; Décima Segunda Câmara Cível; Rel. Juiz Conv. Luciano Carrasco Falavinha Souza; Julg. 16/03/2016; DJPR 20/04/2016; Pág. 294)
E foi justamente por essa razão que, agora, vê-se no Código de Processo Civil:
Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.
1º O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei.
É dizer, para que o incidente tenha pertinência, deverá o credor-exequente, necessariamente, comprovar que o pleito atende aos pressupostos previstos na Legislação Substantiva.
3.1. O abuso de direito
Da leitura da norma supra-aludida, percebe-se que a mesma reclama, para fins de superação da personalidade jurídica, o abuso de direito. Como bem salienta Sérgio Campinho, a mera incompetência na administração da sociedade empresaria não poderá ser, por isso só, motivo suficiente para superar-se a personalidade jurídica e, com isso, penetrar-se no patrimônio dos sócios. (ob cit, p. 69)
Com efeito, no diploma legal antes mencionado (CC, art. 50) – adotando a “teoria maior” ---, reivindica, antes, o abuso de direito para autorizar-se a invasão do patrimônio de terceiros. (cf. CC, art. 187)
É considerado abuso de direito, em outras palavras, ato ilícito, quando, ausente o ânimo de causar dano a outrem, o sujeito supera os limites da normalidade admitidos em lei. Digamos, ilustrativamente, que determinada instituição financeira detenha porta giratória que detecta metais. Até aí nada de anormal. Afinal, além de ser permitida por lei, serve, maiormente, como proteção do usuário bancário. Todavia, nessa mesma situação, se o preposto dessa instituição financeira resolve frustrar a entrada dos usuários e/ou correntistas com posturas inadequadas (v.g., pede para levantar a blusa, ordena que um cadeirante retorne por conta do acesso dificultoso etc), aí, sim, estamos diante de situação que ultrapassou aquela hipótese legal de proteção.
Nesse compasso, caberá, para efeito de desconsideração da personalidade jurídica, à luz dos ditames fixados no Código Civil (CC, art. 50), seja comprovado o abuso de direito. Para o legislador, nesse caso, esse é caracterizado pelo desvio de finalidade ou, alternativamente, em face da confusão patrimonial.
3.1.1. Desvio de finalidade
Como bem defendem Sebastião de Assis Neto, Marcelo de Jesus e Maria Izabel de Melo, o desvio de finalidade pode assim ser considerado na eventualidade de comprovação de atividades desconectadas daquelas autorizadas à pessoa jurídica; em face do exercício de atividades ilícitas e, ainda; quando a sociedade empresária é utilizada com o fito de enriquecimento de seus sócios. (Manual de direito civil, Salvador: juspodvim, 2013, p. 213)
Nesse mesmo passo são as lições de Flávio Tartuce:
“Em resumo, não se pode esquecer que, para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, devem ser utilizados os parâmetros constantes do art. 187 do CC, que conceitua o abuso de direito como ato ilícito. Esses parâmetros são o fim social ou econômico da empresa, a boa-fé objetiva e os bons costumes, que constituem cláusulas gerais que devem ser preenchidas pelo aplicador caso a caso. “( Direito civil: lei de introdução e parte geral, 8 ed., São Paulo: Método, 2012, p. 244)
Abaixo transcrevemos trecho de julgado que aponta uma hipótese típica de desvio de finalidade:
Interposição de recurso contra decisão do relator que indeferiu o pedido de atribuição de efeito suspensivo ao recurso. Pleito de suspensão da decisão que acolheu o incidente de desconsideração da personalidade jurídica dos executados e determinou a inclusão dos agravantes no polo passivo da relação processual. Hipótese em que não resultou evidenciado o risco de dano grave e de difícil reparação aos agravantes, bem como, de plano, a plausibilidade do direito por eles invocado, não fosse bastante a circunstância de que tal recurso se afigura prejudicado, ante o julgamento concomitante do agravo de instrumento. Decisão mantida. Recurso improvido. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURIDICA. Execução por título extrajudicial. Demonstração inequívoca da verificação do abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade e confusão patrimonial entre os executados, a empresa Fortland Participações Ltda e seus sócios. Autorização de que sejam alcançados nesta execução os bens pertencentes à empresa agravante e de seus sócios. Desconsideração da personalidade jurídica dos executados deferida. Decisão mantida (RI, 252). Recurso improvido. Dispositivo: Negaram provimento a ambos os recursos. (TJSP; AI 2197838-82.2021.8.26.0000; Ac. 15336935; São Paulo; Décima Nona Câmara de Direito Privado; Rel. Des. João Camillo de Almeida Prado Costa; Julg. 25/01/2022; DJESP 11/02/2022; Pág. 2547)
3.1.2. Confusão patrimonial
A confusão patrimonial é, de longe, o episódio com maior número de ocorrências no cotidiano forense.
Nesse caso, constata-se um baralhamento entre o patrimônio da sociedade empresária e com os dos sócios dessa.
Isso acontece, máxime, quando há a transferência direta dos valores pertencentes à sociedade empresária à pessoa do sócio. Sem sombra de dúvidas um ato ardil. Demonstra-se, com isso, a confusão patrimonial, quando, no caso, créditos da sociedade são confundidos com aqueles dos sócios.
É preciso que não se confunda, óbvio, com a distribuição de lucros, o que seria uma postura administrativa legal. Ao revés disso, o que acontece é um depósito de valores direto na conta do(s) sócio(s). Digamos, grosseiramente, “entra no caixa da empresa, transfere-se para conta do(s) sócio(s)”. Assim, astuciosamente o dinheiro não para na conta da empresa e, evidente, inviabilizará qualquer tentativa de penhora de bens.
Bem elucidativos os julgados abaixo destacados:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. JUSTIÇA GRATUITA DEFERIDA. DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE MANTIDA. CONFUSÃO PATRIMONIAL CONFIGURADA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.
Demonstrada a situação de miserabilidade econômica da empresa autora, que tem contra si várias execuções, inclusive, (ação cautelar preparatória nº 0800959-13.2011), onde foi deferida liminar para tornar indisponíveis os seus bens móveis e imóveis e o bloqueio de contas e movimentações financeiras da pessoa jurídica, razoável neste momento a concessão dos benefícios da gratuidade judicial. Aplica-se a desconsideração inversa da personalidade jurídica, quando demonstrada a ocorrência da confusão patrimonial da empresa agravante nos termos do que dispões o art. 50 do Código Civil. (TJMS; AI 1412103-25.2015.8.12.0000; Primeira Câmara Cível; Rel. Des. Divoncir Schreiner Maran; DJMS 28/01/2016; Pág. 9)
AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. PESSOA JURÍDICA. CONFUSÃO PATRIMONIAL. DESCONSTITUIÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. POSSIBILIDADE NO CASO CONCRETO.
Nos termos do art. 50 do ccb, a desconsideração da personalidade jurídica é medida excepcional que somente pode ser determinada quando caracterizado o desvio de finalidade, a confusão patrimonial, bem como dissolução irregular, o que restou demonstrado no caso dos autos. Agravo de instrumento provido. (TJRS; AI 0385781-82.2015.8.21.7000; Estância Velha; Décima Quinta Câmara Cível; Relª Desª Ana Beatriz Iser; Julg. 20/01/2016; DJERS 27/01/2016)
( 4 ) As teorias maior e menor da desconsideração da personalidade jurídica
Quando se argumenta em teorias maior e menor, tem-se em foco duas possibilidades diferentes de atuar-se com o propósito de desconsiderar a personalidade jurídica: uma, a teoria maior, que reserva maior amplitude de fatos a serem comprovados para ensejar mencionada desconsideração; a segunda, a teoria menor, ao revés, dispensando maiores provas, assenta-se tão só, como regra, a insuficiência patrimonial da sociedade empresaria para pagar seus credores.
4.1. A teoria maior
É a regra geral adotada no sistema jurídico brasileiro (CC, art. 50).
Para a desconsideração da personalidade, com ênfase nessa teoria, pede-se sejam demonstrados, de maneira alternativa, a confusão patrimonial ou o desvio de finalidade. Nesse contexto, a simples insolvência do devedor não é motivo suficiente para afastar o véu da personalidade jurídica.
Desse modo, o emprego da teoria maior, como se percebe, vai além do mero obstáculo ao recebimento do crédito. É necessário provar-se o “abuso da personalidade jurídica”. Portanto, há mais requisitos a serem atendidos. Daí ser, digamos, por isso, “maior”.
Referida teoria maior, ademais, é subdividida em objetiva e subjetiva, como abaixo destacamos.
4.1.1. A teoria maior objetiva
Nessa hipótese, consoante consagrados autores da doutrina civilista, tem-se em conta a ausência de ânimo, de propósito específico de fraudar a lei. (Por todos, cf. Flávio Tartuce, Direito civil..., vol 1, p. 240)
4.1.2. A teoria maior subjetiva
Novamente apoiamo-nos no magistério de Cristiano Chaves de Farias e Nélson Rosenvald, quando, com muita propriedade, afirmam que a teoria maior subjetiva reclama, sobretudo, a existência de ato intencional de prejudicar ou fraudar terceiros. (ob cit, p. 455)
4.2. A teoria menor
Adota-se referida teoria, em regra, pelo simples fato da inexistência de capacidade financeira para responder com o débito. Não há que se falar, portanto, de qualquer situação fática de propósito fraudulento ou abusivo perpetrado pelo devedor. A mera insolvência, desse modo, é o elemento-chave que possibilita a desconsideração da personalidade jurídica. Assim, um único pressuposto. Por essa razão, “menor”.
Regra legal típica que configura a teoria menor é o Código de Defesa do Consumidor (CDC, art. 28, § 5o). Há também a Lei Antitruste (Lei nº 12.529/11), a Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98, art. 4o) etc.
Conclusão
Certamente, maiormente à luz dos fundamentos acim134a debatidos, o princípio da autonomia patrimonial deve ser privilegiado. Afinal, do contrário, poucos arriscariam em formalizar uma sociedade empresaria, quando, por qualquer motivo, pudessem a vir responder com seu patrimônio.
No entanto, não podemos perder de vista o significante número de fraudes existentes, em sua grande parte buscando fraudar os credores quanto ao recebimento de seus créditos.
Nessas hipóteses, obviamente, de muito proveito e até salutar a utilização do mecanismo previsto em lei com esse propósito, ou seja, a desconsideração da personalidade jurídica. (novo CPC, art. 133 e segs.) Desse modo, as eventuais fraudes se submetem ao crivo do Judiciário, o qual, da análise do caso concreto, possibilitará a invasão ao patrimônio dos sócios para quitar eventual dívida pendente.
Espero ter auxiliado...
Vejo você na próxima dica.
Alberto Bezerra é professor de Prática Forense Penal, Civil e Trabalhista. Advogado atuante desde 1990. Também leciona a disciplina de Direito Bancário. Pós-graduado em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo(PUC/SP). Articulista, palestrante e autor de diversas obras na área do direito, incluindo Prática Forense Bancária, Teses de Defesa na Prática Forense Penal e A Teoria na Prática: Responsabilidade Civil.
PS.: Se vocês gostou, por favor compartilhe. Agradeço-lhe.
Tópicos do Direito: desconsideração da personalidade jurídica incidente de desconsideração da personalidade jurídica CC art 50 teoria maior teoria menor CPC art 133 confusão patrimonial desconsideração invertida da personalidade jurídica cdc art 28
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